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Foto do escritorShellah Avellar

A dialética das aparências






Por Shellah Avellar


BAM!

Mirabella bateu a porta do bagageiro de seu golzinho mil de cor branca.

Quando se dirigiu para abrir a porta da frente, cinco homens se aproximaram.

Dos quatro, dois de corte de cabelo careca. Os outros dois, cabelos caindo aos ombros, em desleixo e relaxo. Os quatro, de buço e quase barba. O quinto, mais velho, baixinho e atarracado, só empesteava. Sacou um revólver e relinchou como uma mula num sobressalto.

-É um assalto! Me dê as chaves do carro e se afaste !

Ainda estupefata, Mirabella, com seus órgãos se movendo dentro do corpo, grudou nas chaves e suplicou: -Moço, por favor, preciso do carro para trabalhar. Deixe ao menos eu pegar a bolsa e meus livros e CDs que são meus instrumentos de trabalho.

Ele se aproximou, apontando a arma para sua testa e com uma voz de dentes de morder, vociferou, do fundo de suas sombras individuais, morrendo de medo, mais que ela: – Quer morrer, moça?

Os outros quatro a rodearam. Seus olhos punham palavras de medo.

Mirabella ensaiou gritar, em sua petulância ingênua. O rústico, com hálito de aguardente, estendeu a palma, recurvado, de olhos nas chaves que eram ferro em brasa nas mãos de Mirabella, que, sem escapatória, finalmente, as entregou, vacilante.

Os cinco entraram no carro e partiram, sumindo na noite, sabe-se lá para onde…

Mirabella, se sentiu sozinha como uma página em branco.

Prisioneira de um livro que ainda estava por nascer.

Olhou em volta. Para ver se alguém tinha visto ou ouvido o acontecido.

Latido de cães. Noite sem luar. Precisava voltar à realidade. Respirou profundamente.

Foi subindo a ladeira. Tentou se localizar. Olhou a placa. Rua dos Jornalistas. Sorriu. E nenhum deles por aqui para dar o furo do flagrante delito.

Viu uma portinha aberta com luz depois de passar por um muro alto. Lá estava um senhorzinho. Na parede, um relógio marcava 23h.Vislumbrou a mesa com um telefone. Perguntou se podia usar. O velhinho, já de barba branca imposta, assentiu. Ela disse: – Fui assaltada. Levaram tudo. Preciso ligar para alguém.

Ele disse – Eu vi. Fiquei com medo de chamar a polícia e os rapazes fazerem mal pra moça. A moça tem que ligar pro 190.

Assim ela fez. Contou o acontecido. Mandaram ela fazer o BO (Boletim de Ocorrência) na delegacia mais próxima. A XX da Zona Sul. Assim fez. Saiu de lá por volta das 02 horas da manhã. Ligou para casa. E também para Ernestino, diretor-presidente da Empresa para qual trabalhava, onde exercia a função de Diretora de Projetos Especiais, para avisar que não iria trabalhar pela manhã, porque ia resolver coisa de segunda via de documentos e cartões dos bancos. Esse a instruiu também a ligar para o Detran avisando e dando os dados do carro.

-Quem sabe, eles podem ter usado o carro para um assalto e depois abandonam em algum lugar, – ele disse.

Enfim. Noite agitada e tensa. Com os pés na aurora do dia. Sem sossego e ansiosa por repouso. Foi para casa.

Mirabella era moça guerreira. Se virava nos seus 39 anos. Tinha uma bebê de 8 meses, cuja criação assumira sozinha, e que a esperava dormindo a sono solto, tendo por companhia, uma babá assustada, por conta de seu atraso.

Tomou um banho demorado. Liberou a babá e assumiu seu lugar na cama, onde tentou relaxar, abraçada à sua bebê, sem pregar os olhos.

O filme do assalto rebobinava incessantemente em sua mente agitada.

No dia seguinte, tomando as devidas providências, retomou a sua rotina enlouquecida. Agora, sem carro, e sem possibilidade de comprar outro tão cedo, pois não tinha seguro. Na verdade, sempre teve. Mas, não renovou por conta do orçamento apertado e das despesas nossas de cada dia.

Todos diziam que ela não iria rever o carro.

– Os Golzinhos da Volkswagen são muito visados para desmanche. E sabe-se lá por que, ela dizia que o carro iria reaparecer.

E, assim, vida seguiu.

Nove meses depois. O interfone do apartamento no Real Parque, tocou por volta de quase meia-noite. O porteiro falou que tinha uma pessoa que se dizia ser primo de Mirabella, e, insistia em falar com ela. Atendeu. O tal sujeito disse que uma parente dela estava agonizante em Suzano e que esperava que ela descesse e fosse com ele até lá.

Mirabella achou muito estranho porque não tinha nenhum parente em Suzano. Perguntou o nome e ele não respondeu. Pediu para passar o interfone para o porteiro.

Ela solicitou ao porteiro que descrevesse o cara. Ele disse que eram dois. E que estavam de carro. E era um fusca verde. Anotou a placa. E, por fim, o mandou embora.

Disse que o cara se enfureceu e gritou que se a parente morresse a culpada ia ser ela.

Mirabella ligou para 190, contou o caso e confirmou que a chapa era fria.

Achou aquilo tudo insólito. Embora tivesse as bem-aventuranças dos bocejos, não conseguiu dormir.

No dia seguinte, no fim da tarde, recebeu um interfone de uma pessoa que se apresentou como policial da YY Delegacia de Distrito AA da Zona Leste . Disse que tinham localizado um carro. Um Gol, que tinha sido roubado. Descreveu o veículo e Mirabella confirmou que era o seu.

Disseram que ela deveria acompanhá-los para reconhecer o carro.

Ela disse que só poderia ir no dia seguinte. Eles insistiram. Ela negou. Perguntou se o carro não deveria estar na delegacia onde ela fez o BO. Eles disseram que não. Ela pediu o cartão do policial e disse que iria lá no dia seguinte. Alegou não ter com quem deixar a bebezinha.

E, subiu. Com a pulga atrás da orelha. Tudo parecia esquisito. Apesar de Mirabella estar super feliz de terem encontrado o carro.

Ligou para a Delegacia do Jabaquara. Eles não haviam sido informados de que o carro tinha sido encontrado.

Ligou para Ernestino, que por acaso era advogado, embora não exercesse a profissão. Perguntou se ele poderia acompanhá-la no dia seguinte. Porque, além de estar sem carro, não queria ir até lá sozinha.

Contou da visita inesperada da noite anterior e do papo esquisito de o tal parente estar agonizando. Da placa fria, etecetera e tal.

Ernestino apareceu no horário marcado, trazendo um amigo de infância que era advogado criminalista. Ficou sabendo da história e se prontificou a ir junto.

Lá chegando, por volta das 15 horas, o exagero estava estabelecido. O sinistro sussurrava errático.

O que poderia ser um dia de júbilo se tornou um imperfeito aloprado.

Juntamente com o Delegado e o escrivão que tinha se apresentado como policial ao visitar Mirabella no dia anterior e ter pedido que o acompanhasse, estava presente um homem alto e forte que disse se chamar Rubão.

O delegado perguntou ao tal do Rubão, que fazia juz ao aumentativo, se Mirabella era a pessoa que lhe havia vendido o GOL.

Rubão confirmou. E disse que ela tinha ido à sua oficina de carros usados, com seu marido e vendido o carro para ele.

Para espanto de Mirabella e dos seus dois amigos.

Esta moça, embora doce de afeto, era tinhosa. E teve entremeios de risadas nervosas. Sua espontaneidade deu lugar à indignação inconteste, cuja verborragia naquele momento traduzia as tempestades de sua surpresa.

Mirabella era divorciada há vinte anos e não tinha marido.

E o pai de sua filha tinha ido embora para a Alemanha ,dois meses depois da bebê ter nascido..

O advogado pediu para que Mirabela se acalmasse e ouvisse o tal do Rubão.

Mirabella, ofegante, assentiu, a contragosto.

Abriu-se inquérito.

Mirabella, de agredida, passou a ser considerada suspeita, de ter vendido seu próprio carro e ter simulado o assalto.

Como era moça distraída, deixava sempre os documentos do carro no porta-luvas. Embora sempre alertada pelos amigos.

E lá tinha todos os seus dados. Sua bolsa tinha seus documentos e cartões.

Foi fácil localizá-la.

O Rubão, mostrou um recibo da venda assinada por ela.

Tinha seu nome inteiro, mas a assinatura não batia de jeito nenhum. Fizeram a assinatura por extenso, e faltando um ele em Mirabella.

E, se tinha uma coisa que Mirabella fazia questão era dos tais dois eles. Era seu diferencial nos cartões de visita.

E sua assinatura era bem original e complexa, porque ela era muito sofisticada com estes detalhes.

Ainda assim, a suspeita era ela.

Mirabella teve que tirar fotos de frente e de lado.

E um interrogatório sem fim. Tudo sendo anotado pelo tal escrivão de nome Toninho.

Sua letra iria ter que passar por um grafotécnico especializado.

O delegado, incisivo:

-Descreva o assalto!

-O que a senhorita estava fazendo sozinha, por volta as 23 horas na Rua dos Jornalistas no Jabaquara?

-Fui convidada para dar uma palestra para quinhentas pessoas no Centro Cultural ali perto sobre Física Quântica e Espiritualidade. O ingresso era uma lata de leite em pó para crianças portadoras de câncer.

Esta era uma atividade paralela que Mirabella exercia por puro prazer.

Quando ela disse isto, o tal do Rubão começou a chorar e disse que também era uma pessoa caridosa e que ajudava muita gente, para espanto do advogado que lhe acompanhava.

E, desconfiada, Mirabella continuou:

-Algumas pessoas me ajudaram a carregar as latas para o carro e depois voltei para cumprimentar os presentes.

-Ao retornar para o carro fui abordada pelos 5 rapazes.

Descreveu a cena como acima, no início desta história.

-Alguém viu o assalto?

-Ela disse : Eu achava que não. Porém ao subir a ladeira, vi um senhor, que era segurança de uma escola ali localizada. E, ele me confirmou que viu tudo, quando pedi para usar o telefone.

Neste momento, tanto o delegado, como o escrivão e também o Rubão se inquietaram.

-A senhorita sabe o nome dele?

-Não! Ela disse. Mas posso ir lá tentar localizá-lo.

-Também posso provar que dei a palestra porque a organização tem a lista dos participantes com nome, email e telefones.

A esta altura chegou o advogado do tal Rubão.

E ele perguntou à queima-roupa : – A senhorita tem a apólice do seguro do carro?

-A companhia já foi acionada? Já lhe enviaram o novo automóvel?

Mirabella sorriu e disse -Não, senhor! O seguro estava vencido.

Neste momento, o advogado de Rubão, enrubesceu. Chamou ele de lado e disse que iria abandonar o caso.

O escrivão, se referiu ao Rubão – Rubinho, você tem que se conformar.

Mirabella achou enigmática aquela intimidade do escrivão com o Rubão que passou a ser tratado como Rubinho. Ela perguntou -Vocês são amigos?

Os dois ficaram sem graça.

Mirabella e seus amigos ficaram na delegacia até às 5 horas da manhã.

E foi um custo para liberarem a pobre coitada.

O processo durou três meses.

Ela foi atrás do segurança, que prontamente, compareceu à delegacia e deu seu depoimento, verdadeiro e simples como ele.

O teste grafotécnico deu negativo, confirmando que sua assinatura não era compatível com a do tal recibo de compra e venda.

A Organização do Instituto Cultural fez uma carta de protesto com a assinatura de todos os presentes na palestra de Mirabella.

Mirabella recuperou seu carrinho, absolutamente intacto, para surpresa geral, total e irrestrita de todos e todas.

Mirabella e seus amigos foram comemorar com um jantar regado a vinho.

E o advogado, ainda, absolutamente impactado com aquela história estapafúrdia. Repetia incessantemente – O tal Rubão (ou Rufião?) chorou copiosamente na minha frente. Que coisa inacreditável!

Mas, Mirabella se sentia incomodada.

Embora confiasse em sua intuição. Pois sabia todo o tempo que algo estava errado. Que algo estava fora de lugar. Que o araque pode ser perigoso embora a sensatez da inocência supere tudo.

Um vazio inexplicável. Revisava a história e pensava que viver é um encargo de muito desempenho.

Que o devaneio pode se manifestar e se esgotar quando a sua verdade parece comprometida.

Que a charlatanice está o tempo todo presente e que algumas consciências são tomadas por vertigens. De precipitar o pior de si mesmo e ser hostil pelo puro prazer de enganar a si mesmo e aos outros.

E, que, embora reconheçamos este risco. Não temos o privilégio de preveni-lo. Dentre a inumerável multidão dos semelhantes que nos cercam, podemos sofrer condenações imerecidas provindas de insensatos.

Que embora se considerasse transparente e cristalina, percebeu o malogro gratuito que por alguns meses anoiteceu seu mito pessoal.

Que nos lugares que atravessou com esta questão, em desespero de causa, a palavra percorreu um sentido interno com a necessidade de legitimar o que é monstruoso. E que era urgente e necessário, retomar os caminhos de sonhar.

Voltou à sua vida, ainda um tanto acorrentada a este intempestivo acontecimento.

Como se faltasse um laço para finalizar o clarão efêmero daquele instante angustiante.

Quatro meses depois, ao ler o jornal, no café de uma livraria, Mirabella viu a seguinte notícia: “Quadrilha de roubo de carros foi desbaratada na zona leste de São Paulo.” Policiais, assaltantes e agências de carros usados estavam envolvidos. Rubens da Silva, conhecido como Rubão, era o cabeça da operação.

Mirabella finalmente suspirou aliviada.

Não havia ali qualquer sentimentalismo.

Não era apenas a defesa de uma suspeição que proclamava sua inocência.

A sociedade que lhe traiu retomou a sua lei natural e o ideal civil.

A justiça foi feita. Ainda que momentaneamente, a prerrogativa social reafirmou os direitos inalienáveis dos homens.


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Shellah Avellar, Jornalista, Escritora, Especialista em Gestão de Processos Comunicacionais. Premiada nacional e internacionalmente, cria e executa projetos especiais de Comunicação, Cultura, Arte e Responsabilidade Social.

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http://blog.sensorion.com.br

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