Por Dany Al-Behy Kanaan
Clarice Lispector comemora cem anos de nascimento neste turbulento ano de 2020. Clarice nunca foi tão comemorada como nas últimas duas décadas: estudos acadêmicos nacionais e internacionais, biografias, reedições, edições especiais... Clarice sempre viva na voz, na escrita, na leitura de tantos sujeitos comuns e os chamados “especialistas”. Este termo, um tanto controverso se considerarmos a insistência da autora em frisar que sua obra “toca ou não toca... não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato”, chamando a atenção para aquilo que tem de mais profunda: a comunicação com o outro, mobilizando-o em sua sensibilidade: “... preciso depressa de tua empatia. Sinta comigo”. Ler Clarice é viver na turbulência. Sempre insisti, e insisto, não basta ler seus textos, é preciso “escutá-los”, como é preciso escutar a sua autora: “Não ler o que escrevo como se fosse um leitor. A menos que esse leitor trabalhasse, ele também, nos solilóquios do escuro irracional”. E por meio de sua voz, essa voz surgida do abismo, escutar quem somos e o que desejamos. Não posso dizer que Clarice está mais atual do que nunca. Porque Clarice nunca deixou de sê-lo. Basta o simples exercício de pegar um texto seu e abrir em uma página qualquer: lá está ela, lá estamos nós e lá está este presente turbulento que nos arranca de nossas certezas ilusórias e nos confronta com esse estranho que somos para nós mesmos. Não por acaso o estranho é uma característica tão familiar em sua vida e em toda a sua obra, ajudando-a a construir tanto uma quanto outra. Esse “estranhamente familiar”, nas palavras de Freud, fez dela e de sua obra únicas, singulares. Como todos aqueles artistas que não temeram “morrer de sua própria morte”, que não deixaram de viver por medo de se arriscar. Clarice correu muitos riscos, com todo o susto e a surpresa de se descobrir outra, outra de si mesma. “A legião estrangeira”, conto seu de cunho auto/biográfico (com essa barra, assegurando o tom de ficção que compõe a nossa história) é a prova viva de como viver o estranho nos arrasta numa experiência tão assustadora como reveladora. Clarice sabia que sem (nos) estranharmos não produziremos o novo. Com seu “assovio no vento escuro”, um dos treze títulos possíveis para seu romance A hora da estrela, nos faz, cem anos depois de seu nascimento, escutar que... que somos falíveis. Que nossas certezas são frágeis argumentos “Para que a casa não estremeça”, como escreve em sua crônica-grito de revolta “Mineirinho”. A nossa casa, quem somos. E somos seres desamparados por natureza. Essa é a verdade de seu assovio que quase faz estourar os nossos tímpanos. Mas sem escutarmos essa verdade, sem “corrermos o risco de nos entendermos”, nossa casa nunca será segura e nunca “nos salvaremos”. Está aí esta outra “verdade” de Clarice: para construirmos uma casa segura, precisamos aceitar o risco que ela própria aceitou, de fazer ruir os frágeis alicerces que nos impede de olhar, e de escutar, aquilo que tememos em nós. De olhar para este outro que somos nós! Um olhar e uma escuta acolhedores, capazes de nos fazer não sentir a fome do outro, mas sentir que o outro também tem fome, que esse outro também somos nós. Só assim poderemos “dormir tranquilos”, “sem medo que nossa casa estremeça”, sim, “Porque quem pensa desorganiza”. Clarice desorganiza todo o nosso sistema de referência. Sempre, como já disse, a cada vez que abrimos um livro seu. E é graças a essa desorganização, e somente a ela, que poderemos olhar para esse mundo doido no qual vivemos, e nos perguntar qual o nosso lugar nele, qual o lugar que queremos ocupar nele. E, também, que marca queremos deixar nele. Um mundo contraditório, que procura nos afastar de nossos sentimentos, de nossa história, nos alienando de nós e em nós mesmos. Um mundo no qual assistimos ao nosso desamparo, tão caro a nós, ser transformado em indiferença. Em que “... um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entender. Para que a casa não estremeça”. Mas, repito, ecoo com Clarice, neste seu grito de revolta, que somente graças a essa desorganização nunca poderemos esquecer “de que nossa luta é a do medo”, pois estamos vivos. E com todo medo, que é também a nossa salvação, ver que a escuridão também existe em nós.
Escuro, estranho, é o nosso momento atual, esse ano de pandemia, que expõe os nossos medos, nossas fragilidades, nosso desamparo. E que pode nos contagiar com sua desesperança. A menos que, como nos lembra Clarice, olhando bem fundo no escuro de nós mesmos, escutando atentamente o som de nossos medos mais terríveis possamos, em vez de nos refugiarmos em “nossa casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa [que] não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta trancada”, em vez disso, eu volte meu olhar e minha escuta para os alicerces de minha casa, antes que seja tarde, e perceba que “aquilo que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede”, possa afastar as sombras do vírus da indiferença, que seca minha garganta, aperta meu peito e me deixa sem ar. E, então, vacinado contra esse vírus mortal, que querem me fazer acreditar que a ele sou imune, eu entenda “que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre [uma] cabeça aturdida e doente, poderia aplacar”.
Hoje, cem anos de Clarice, se fecho minha porta, se me refugio em minha casa, não é porque deixo de fora o meu irmão, mas porque, preocupado com a nossa vida, com a vida, eu me distancio para nos proteger, porque sei que nossa casa é frágil, e compreender que o meu medo não é compreender, mas compreender que “esse medo” pode ser exatamente a nossa salvação, alcançada somente “pela confiança, pela esperança e pelo amor”, porque “... sei que um homem pode ser o pai de outro homem”. E nunca esquecer que “... todos nós, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento (...) cometendo o seu crime particular, um longamente guardado.”
Cem anos depois de seu nascimento, Clarice Lispector continua ecoando em nosso presente, em nossos ouvidos, aquilo que ela viveu até o seu último “sopro de vida”: a possibilidade de nos entendermos, de entendermos o mundo contraditório que habitamos, para, transformados, transformarmos nossa realidade. Com toda a nossa força e nossa fragilidade. E, como ela, dizer, com toda a nossa verdade: “Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da alegria”.
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Dany Al-Behy Kanaan
Psicanalista. Mestre e Doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Professor de cursos de Pós-graduação Lato Sensu da UniFaj e UniMax; Coordenador e professor do curso de Formação em Psicanálise (Instituto Antonio Diogo). Autor dos livros À escuta de Clarice Lispector. Entre o biográfico e o literário: uma ficção possível (Educ e Limiar) e Escuta e subjetivação. A escritura de pertencimento de Clarice Lispector (Casa do Psicólogo e Educ).
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