Por Shellah Avellar
Um mito? Apenas um homem? Um acontecimento? A vida singular transformada em maravilha ou a não adequação à vida singular? A obsessão lúcida? Vontade indomável? Um livro aberto? Silêncio inquietante?
Sim, ele era um homem franzino. Pequenino. Quase imperceptível.
Olhos brilhantes. Perscrutadores. Radiografava e escaneava todos os que dele se acercavam, buscando significados nos significantes e insignificantes mistérios da alma humana.
Satya, Verdade e Ahimsa, não violência, eram seus lemas. Seu pensamento, sua obra. Sua ação.
Jejuava pela paz. Jejuava pelo amor. Jejuava para unir. Jejuava para libertar seu povo da opressão britânica.
Mas este fato o torna santo?
“Todas as minhas possessões no mundo reduzem-se a um prato da prisão, algumas roupas e a minha reputação, que qualquer um pode utilizar.”
Alguns o qualificam como um mensageiro de Deus, ainda que admitindo nunca ter recebido nenhuma revelação divina.
Ou apenas coerente?
Ele mesmo contradiz a coerência:
“Não estou absolutamente interessado em parecer coerente. No meu caminho em busca da verdade, tenho abandonado muitas ideias e tenho aprendido muitas coisas novas. Velho como sou de corpo, não tenho a consciência de ter cessado de crescer interiormente, ou que o meu crescimento vá estagnar com a dissolução da minha carne. O que me interessa é a minha atitude de prontidão em obedecer ao chamado da verdade, de momento a momento. Há princípios eternos que não admitem compromisso, e o homem deve estar disposto a sacrificar a sua vida para obedecer a esses princípios”.
O menino. O jovem. O chamado.
Mohandas Karamchand Gandhi nasceu no dia 2 de outubro de 1869, em Porbandar, na Índia Ocidental (hoje estado de Gujarat). Casou-se aos 14 anos com Kasturbai, da mesma idade, numa união acertada entre as famílias. O casal teve quatro filhos.
Grande conhecedor das escrituras hindus, aos 19 anos vai estudar Direito na Universidade de Londres, no Reino Unido. Regressa à Índia, Bombaim, como advogado. Depois emigra para a África do Sul, onde viviam 150 mil indianos.
Um divisor de águas em sua trajetória: um incidente ocorrido ao viajar de trem. Gandhi ia na primeira classe, quando solicitaram que se transferisse para a terceira classe, por ele não ser branco. Ao se recusar, foi jogado para fora . O episódio o incentivou a advogar contra as leis discriminatórias vigentes.
A ação de Gandhi consistia em desobedecer as leis inglesas sem se importar com sofrer as consequências do ato, de boicotar os produtos ingleses, de fazer greves de fome para que hindus e muçulmanos deixassem de lado as divergências religiosas e se unissem em favor da causa comum: a independência. Acabou por conquistar admiradores no mundo todo, inclusive na Inglaterra.
Entretanto, a Segunda Guerra Mundial (1939-45) teve o efeito de enfraquecer a Inglaterra, de modo que, ao fim do conflito mundial, não conseguiu mais manter o domínio sobre a Índia. Em 15 de agosto de 1947, a independência da Índia foi declarada. O país, porém, ainda enfrentava forte tensão entre os grupos religiosos rivais e se fragmentou em dois, a Índia propriamente dita e o Paquistão, sendo que este estava geograficamente dividido em Oriental e Ocidental, com um enclave indiano entre ambos.
Portanto, a violência religiosa e a disputa por terras prevaleciam. Em 1948, a ilha do Ceilão, a sudeste do subcontinente indiano, tornou-se um Estado independente, com o nome de Sri Lanka. Do mesmo modo, o Paquistão oriental formaria um novo país, Bangladesh, em 1971.
Hoje, na República da Índia, os conflitos entre hindus e muçulmanos são menores, embora persistam. Outros dois grupos religiosos também têm força no país, os budistas e os sikhs, uma seita hinduísta com características próprias. As relações com o Paquistão ainda são conflituosas, em especial no que se refere à província indiana da Caxemira, no norte do país.
Clarividência
Gandhi agia de modo tão peculiar que soava como absurdo. Parecia um líder nacionalista como outros tantos comuns na época dele, Sukarno na Indonésia, Bembela na Argélia, Nasser no Egito e outros. Porém, diferenciava-se na aplicação dos princípios da autonomia, da autopurificação e da não violência no processo de independência da Índia.
E a independência da Índia não é pouca coisa porque ela era a joia da coroa inglesa. De todas as colônias, era a colônia-chave. Retirada, quebraria o império inglês, como quebrou.
E ele, diante de uma luta tão crucial para o mundo todo, pois se estava mudando um sistema colonial imperialista, do qual a Inglaterra era o paradigma, defendeu que era possível ter um entendimento com o centro do império. E muitas vezes ele defendeu que a Índia e a Inglaterra continuassem ligadas numa comunidade, em que as nações tivessem os mesmos direitos e deveres. Chegou a defender, para desespero dos radicais da época, que era possível e bom para a Índia, para a Inglaterra e para o mundo um entendimento entre as partes, e que os dois pudessem continuar ligados, mas como pares, como iguais.
Infelizmente, o movimento de descolonização, tanto do lado dos oprimidos como dos opressores, não tomou essa posição em lugar nenhum e até hoje se vivem as consequências da independência usando o método tradicional da violência contra a violência. Depois, com o avanço da violência e da repressão dos ingleses, Gandhi aderiu à independência total. O entendimento talvez tivesse mudado a história recente, se tivesse acontecido, se a Inglaterra e as lideranças hindus, que estavam com ele, tivessem tido essa clarividência. Preferiram aquela separação, inclusive com a criação absurda do Paquistão, que foi um acontecimento traumático e desastroso para a independência, e motivo de desgosto para Gandhi e de certa forma o motivo da morte dele, uma vez acusado pelo nacionalista hindu que o assassinou de ser tolerante demais com os muçulmanos.
Veja aqui entrevista com Gandhi, à época da luta pela independência.
Vegetarianismo político
Um aspecto que exprime as posições de Gandhi da não violência, da autonomia ou autoconfiança e da autopurificação é a opção pelo vegetarianismo. É uma tradição hindu muito forte, mas nem todo mundo na Índia é vegetariano. O fato é que o vegetarianismo de Gandhi é um elemento político. Quando se discute hoje o desenvolvimento sustentável, o fato de ser vegetariano ou, pelo menos, quase vegetariano, adotando a postura gradualista de Gandhi, pode ser importante. O vegetarianismo dele expressa muito bem suas posições básicas diante da vida, porque é uma forma de produzir melhor, destinar melhor as terras e a produção para satisfazer todo
o mundo, no mundo inteiro. Já existem cálculos mostrando que isso seria possível se as terras fossem mais dedicadas à produção vegetariana do que à carnívora.
Gandhi nunca recebeu o Prêmio Nobel da Paz, apesar de ter sido indicado cinco vezes a ele, entre 1937 e 1948. Décadas depois, no entanto, o erro foi reconhecido pelo comitê organizador do Nobel. Albert Einstein disse sobre ele: “As gerações por vir terão dificuldade de acreditar que um homem como este realmente existiu e caminhou sobre a Terra”.
O legado
Pensei muito antes de pesquisar e escrever tudo isso. Recortes de outras cabeças. Observação das notícias. A falta de alusões a Gandhi, 74 anos após seu assassinato, no dia 30 de janeiro de 1948.
Tantas manifestações pelo mundo globalizado. Por tantas causas sem causa. Outras afins. Um oceano de informações pululando em nossas mentes. Rolezinhos. Passeatas. Marchas com deus e o diabo. Incêndios. Tsunamis. Terremotos e inundações. O mundo em movimento. O planeta ardendo em chamas. Governos caindo de podre. Jovens buscando encontrar um lugar no futuro. Tanta violência. Em casa. Na rua. No trabalho. No lazer.
Fui até a Praça Túlio Fontoura, em frente ao parque do Ibirapuera, em São Paulo, pela manhã. Lá estava a estátua de Mahatma Gandhi. Algumas pétalas. Cruzo com um indiano de branco e lágrimas nos olhos.
Ele passa por mim… desolado… talvez tenha deixado as pétalas; eu, nem isso. Ao contrário dele, não chorei, só senti. Olhei bem para aquela estátua tão bem esculpida… e sorri.
Pensei na história daquele homem até aqui.
Caminhei lentamente até o parque procurando me embebedar das benesses do verde que se derramava para que pudesse ter alguns momentos de solitude neste inferno, que não é o de Roberto Carlos.
E pedi: só quero a sua paz…
De lá segui para o trabalho.
A surpresa
À noite, me reuni com algumas pessoas, talvez ingênuas como eu, no Centro Cultural da Índia, para assistir a uma mesa-redonda sobre a ocupação Gandhi no século XXI.
Após a breve contação de histórias de Tininha Calazans, uma fada, começa o bate-papo com quatro jovens: Pedro Kelson Batinga, coordenador dos projetos de cultura de paz da Palas Athena; Anielle Guedes, economista, presidente do Centro de Empreendedorismo da Universidade de São Paulo; Mariana Campanatti, publicitária e cofundadora do Movimento Imagina na Copa; e André Gravatá, coautor do livro “Volta ao mundo em 13 escolas” e integrante do coletivo Educ-Ação. Esses jovens me chamam a atenção principalmente pelo entusiasmo (que, segundo os gregos, significa ter o deus dentro de si). Talvez isso explique tudo, mas, às vezes, não enxergo esse entusiasmo em outros jovens, salvo quando é para olhar para seu próprio umbigo.
O mais interessante é que eles dizem se inspirar em Gandhi. Não só eles, mas também outros jovens da Índia e da Grécia que acessaram o portal do encontro.
Ora, ora, se assim é, nem tudo é caos nas fronteiras ardentes de Dante.
Se 66 anos após seu assassinato Gandhi estava mobilizando jovens acadêmicos e da periferia em várias partes do mundo e no Brasil, já terá valido a pena.
Johan Galtung, sociólogo norueguês criador da disciplina estudos de paz e conflitos, chama isso de transcendência. É uma inovação: inventar saídas em situações difíceis de conflitos, e o político, o partido político, a força política, a força social ter a capacidade de criar uma posição para onde possam migrar posições conflitantes e as duas posições possam crescer. Essa é uma questão fantástica, a própria essência, a mais alta função da política: transitar não como se fosse um negócio, a compra de um carro ou de uma casa, mas para a criação de uma posição nova.
Gandhi quer que as pessoas, as classes, os grupos, as aldeias, os países, não só a Índia, tenham autoconfiança e autonomia, dependam o menos possível de outras forças e possam viver. E para isso é necessária uma vida a mais simples possível, para não depender de bens que não se consegue produzir nem ter. Esse é o outro elemento-chave, junto com a não violência, a autonomia, a autoconfiança.
Apesar das cicatrizes das guerras. Apesar dos rancores dos conflitos. Apesar das tristezas das batalhas.
Olhar o entorno.
O convite. O sonho é agora.
Gandhi dizia ser bom sinal quando “olhamos melhor nossos próprios defeitos”. Assim nos tornamos melhores amigos de nós mesmos.
Ao tecermos nossa própria indumentária, renunciamos a ambicionar a dos outros.
Ao produzirmos nosso próprio sal, aprendemos a consumir conscientemente.
Aprimorando nossa dignidade e guardando-a como um grão precioso. Fazê-la crescer e prosperar sem nos violentarmos por causa de caprichos de qualquer podre poder.
Num encontro em que o cônsul não discursa, mas canta… e encanta… isso me diz ao coração que é possível ter esperança.
E vou-me embora.
Ao chegar em casa, lá pelas 22h45, coloco a chave no portão. Rua deserta. Um homem surge na esquina e grita para mim, num inglês tipicamente oriental.
— Please, miss… Speak English?
Respondo, atônita:
— Yes. From India?
Ele responde:
— From Pakistan. Where is the supermarket? Need to buy soy milk for my child.
Eu indico:
— Two more blocks and turn your right. Run, it´s closing!
Ele sai correndo…
Eu entro. E me permito sonhar com a paz mundial.
Obs
Este texto foi escrito originalmente no (des)aniversário de 66 anos do assassinato de Gandhi.
EM 2018, estive em Mumbai, e tive a oportunidade de visitar sua residência, onde ele viveu por 17 anos e escreveu SatyaGraha (Princípio da Não-violência em 1919 e disparou o Movimento da Desobediência Civil em 1932.
Hoje, às vésperas da eleição mais importante do Brasil, simbolicamente no dia de aniversário de 153 anos do nascimento de Gandhi, é imperioso trazer à baila O Princípio da Não-Violência, uma vez que o Brasil e seus filhos e filhas têm sido avassalados por uma mitomania às avessas, que ao invés de ser calcada num mito “ exemplar” , o condena definitivamente, e aos seus cegos seguidores, à sua putrescência ordinária.
Falsa alternativa que se opôs à vida em toda a sua exuberância.
Dos confins do horror de nosso crítico momento brasileiro, evoco Gandhi, em sua nobreza, para que dia 02 de outubro de 2022, comemoremos condignamente seu aniversário de 153 anos, e possamos subtrair nossa história deste contexto nefasto.
Que o Brasil possa finalmente ocupar o lugar da grandiosa nação que merece ser e que, em se equilibrando na crista da enorme onda da Paz, possa se desmanchar em espumas e imprimir a Liberdade nas areias de nossas maravilhosas praias, que não estão “à venda.”
__________________
Shellah Avellar, Jornalista,Escritora,Especialista em Gestão de ProcessosComunicacionais.Premiada nacional e internacionalmente, cria e executa projetos especiais de Comunicação,Cultura,Arte e Responsabilidade Social.
https://sensorion2.webnode.com
http://blog.sensorion.com.br
Comments