©José Arrabal
Antes, no limiar do tempo, os homens e as mulheres de todas as idades na Terra traziam na face um só olho.
Eram governados por severo Deus com dois olhos, criador dos seres humanos, presente no Planalto Celestial, divindade vigilante que impunha a todos rigorosos mandamentos, odiava o pecado e punia os pecadores com atormentados pesadelos durante sono sem paz nas horas de dormir. Paz ausente também desde o amanhecer, com o povo ciente do retorno de seus noturnos pesadelos, incapaz de viver sem pecar.
Eis que um dia os homens e as mulheres de todas as idades, com apenas um olho na face, resolveram se revoltar contra quem os governava. Juntos decidiram pecar com a mais intensa constância e propósito permanente, num desafio ao Senhor de dois olhos do Planalto Celestial.
Diante dessa rebeldia da humanidade, o Deus, irado, incapaz de suportar o que mais via, sabedor da insuficiência exemplar de sua punição, os pesadelos semeados no sono das criaturas, decidiu arrancar da própria face seus dois olhos então lançados violentamente sobre os homens e as mulheres de todas as idades na Terra.
Um dos olhos desse Deus caiu com força sobre um rochedo, explodiu em mil e um fragmentos de fogo, alcançou as faces dos seres humanos e, mesmo a contragosto divino, nelas plantou um segundo olho, concedendo aos homens e mulheres de todas as idades dupla capacidade de olhar.
Já o segundo olho do Deus jamais foi encontrado por quem fosse, ainda que as criaturas tivessem agora dois olhos, o que semeou estranho temor nos sentimentos de grande parte do povo crente de que esse olho perdido mantinha-se atento em algum lugar da Terra, disposto a punir com mais aguda severidade a existência das criaturas de Deus.
Alguns poucos, descrentes disto, mais sossegados de tais possíveis temores diante do olho perdido da divindade, talvez também não menos inseguros na vida por viver, entendiam que o severo Deus apenas vagava desesperado no Planalto Celestial...
...e que num gesto de livre arbítrio derrotado cobrira com as mãos os seus ouvidos, estando desde então cego e surdo, distanciado da história humana.
Inquietante controvérsia presente em mim ao despertar deste sonho, duvidoso pesadelo.
JOSÉ ARRABAL é professor, jornalista e escritor, autor de artigos, contos, novelas e romances publicados em cerca de 50 obras de editoras no Brasil e no exterior. O microconto O Olho de Deus é narrativa do livro inédito Feira Livre – Pequenas Histórias, de ©José Arrabal. (Registrado na Biblioteca Nacional 2020) Blog: http://josearrabal.blogspot.com.br/
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