- Esse vento bravo de agora vem de longe. É um vento danado de forte que empurra para cá as nuvens mais pesadas desde a serra do Guilhermino. Repara lá. Vem e traz com ele um temporal danado que há de chegar aqui num instante. Melhor fechar de vez essa janela - falou vô Nicolau junto de mim na sala de casa, prenunciando a tempestade que pouco depois inundou a cidade naquela tarde de sábado.
Trancamos a janela, enquanto o vô resmungava:
- Isso não é nada! Pior é o vendaval do tempo que depressa nos leva ao fim da vida, coisa que sempre fingimos ignorar. Daí é que é ruim... e em mim já está para chegar. Nunca esperei, mas já está para chegar – reclamou, sussurrando. – Se a gente soubesse disso desde cedo, talvez fosse mais fácil...
- Fácil o quê, vô? – quis saber, sem bem entender o que ele falava a meia voz.
Vimos a chuva cair por horas e a inundação ocupar as ruas de São Gabriel das Rochas, no Triângulo Mineiro, onde nasci e ainda morávamos lá naquela ocasião.
Vô Nicolau permaneceu um tanto mais calado durante todo o temporal. Se disse algo, não disse muito, enquanto papai e mamãe se mexiam no mutirão de voluntários formado para ajudar os que tiveram suas casas invadidas pelas águas.
Foi uma enchente e tanto. Pior do que todas as anteriores já acontecidas na cidade.
- ...uma tromba d’água que começou nas alturas da fazenda Rochedo, de Seu Guilhermino Gomes – num rabo de conversa mais tarde, ouvi alguém explicar a papai na varanda de entrada em nosso sobrado. – Do cafezal, dizem que restou pouco. Foi tanta faísca no pasto que matou boa parte do gado. Tempo bravo. Um prejuizão. Tão falando...
Nessa hora, Vô Nicolau se adiantou:
- Isso é pouco, se comparado ao que sempre faz o tempo.
- Pouco, nada...
- Pouco, sim... Dá pena, mas não tem jeito... o tempo é uma perdição. Acaba com tudo – completou o vô, se afastando da conversa.
Ouvi sem bem entender o que ele queria dizer.
Parecia que falava de alguma coisa que só ele sabia o que era, coisa que os demais ignoravam ou fingiam não saber...
...o que só entendi dois dias depois, quando pela manhã Vô Nicolau enfim não mais despertou, nunca mais, naquele março de chuva sem cessar em minhas lembranças de infância.
Faz tempo...
...nessa brevidade da vida.
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JOSÉ ARRABAL é professor, jornalista e escritor, autor de artigos, contos, novelas e romances publicados em cerca de 50 obras de editoras no Brasil e no exterior. O microconto Vô Nicolau é narrativa do livro inédito Feira Livre – Pequenas Histórias, de ©José Arrabal. (Registrado na Biblioteca Nacional 2020) Blog: http://josearrabal.blogspot.com.br/
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